Uma das situações mais dolorosas vividas pelo ser humano e de características tão íntimas, o luto começará a ser tratado por psiquiatras dos Estados Unidos como um distúrbio mental.
A recomendação foi uma das muitas polêmicas anunciadas na semana passada, em San Francisco, durante o lançamento da quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, o DSM-5 (veja quadro). Conhecido como a bíblia da psiquiatria, o roteiro elaborado pela Associação Americana de Psiquiatria (APA) é usado como referência por profissionais de todo o mundo e pela Organização Mundial da Saúde (OMS). O luto não era “regulamentado” nas edições antigas. Agora, quando durar mais de duas semanas, será considerado depressão.
A psiquiatra Fátima Vasconcellos, que esteve nos Estados Unidos para participar da apresentação do DSM-5, avalia que a inclusão do luto de duas semanas no manual surge com base em experiências de pessoas que vivenciam a situação de forma mais grave. “A classificação procura enquadrar casos específicos, como sintomas psicóticos. Mas é bom lembrar que é um guia de orientação. Ele não substitui o conhecimento médico, que determina se o paciente necessita de atenção especializada ou não”, pondera.
Pesquisadora especialista em luto da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Maria Helena Pereira Franco afirma que é preciso levar em consideração que existem questões individuais para a perda de um ente querido. Por isso, o tempo de luto, usado como critério no manual divulgado, pode ser variável.
Para ela, não se pode dizer que a situação é patológica, já que a natureza da morte também influencia os sentimentos de dor. “É o caso de quem perde uma pessoa jovem de forma inesperada, como em um acidente de trânsito, uma situação diferente da vivida por pessoas que se despedem de um idoso, um processo natural da vida”, compara.
Para o psiquiatra Joel Rennó Júnior, a dor após a morte de alguém próximo pode ser tratada como um transtorno mental, mas o médico considera o período de duas semanas muito pequeno. “Embora respeite os novos critérios, na minha prática clínica, percebo que os sintomas do luto são evidenciados após dois meses.” O especialista explica que eles podem vir acompanhados de reações comportamentais, como desorganização, crises de raiva, desespero e, em alguns casos, isolamento e depressão.
Quando o luto “passa do tempo”, segundo Rennó, ele pode desencadear alguns transtornos mentais, como os de ansiedade e de humor. “É bom deixar claro que existe o fator de vulnerabilização, presente em algumas pessoas, que pode prolongar o luto. O resultado são estressores psicossociais diferentes, que podem deixar o indivíduo em condição de riscos mais graves, como a ameaça à própria vida. ”
O policial militar Aderivaldo Cardoso, de 35 anos, teve a saúde mental abalada há um ano e meio, quando perdeu o filho adolescente, vítima de infecção generalizada. Ao perceber que precisava de ajuda, Aderivaldo procurou atendimento especializado, primordial, segundo ele, para que conseguisse reagir. “A visita ao psicanalista foi decisiva. Eu temia que, quando o tempo fosse passando, eu me esqueceria do meu filho, me desligaria dele. Descobri nesse processo que o que une é o amor, não a dor”, afirma.
Especialista em situações de luto, a psicóloga Daniela Lemos esclarece que, em casos de isolamento prolongado, famílias e amigos precisam agir. “Os limites do enlutado precisam ser respeitados. É esperado que, com o tempo, exista oscilação entre momentos em que a pessoa esteja bem e outros não. O que não deve acontecer é permanecer nas extremidades, ou seja, excessivamente voltado para a perda ou excessivamente voltado para a reparação. Nesses últimos casos, indica-se a ajuda profissional”, alerta.
Lemos explica que, apesar de as experiências serem bastante pessoais, o tempo médio de luto costuma extrapolar as duas semanas propostas no DSM-5. “Uso como referência o período de um ano, pois é quando acontecem os primeiros eventos sem a presença do falecido, como aniversários, Dia das Mães, das Crianças, Natal”, afirma. “A classificação procura enquadrar casos específicos, como sintomas psicóticos. Mas é bom lembrar que é um guia de orientação. Ele não substitui o conhecimento médico”.