Não aceitamos pacientes do SUS. Cobertura de planos de saúde apenas para internações. Consultas são somente particulares no Centro de Cuidados em Saúde Mental do HSM, unidade externa localizada na Praça da Árvore, em São Paulo.

Psiquiatria

A psicofobia e o peso das palavras

21″Pouco antes de morrer, em março do ano passado, o humorista Chico Anysio decidiu entrar na luta contra o preconceito que cerca as doenças mentais. Ele sofria de depressão e, num sábado à tarde, recebeu em casa o médico Antonio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), para gravar um depoimento.

Durante a conversa, Chico fez um comentário e uma sugestão: – Antigamente existiam carros usados. Agora chamam de “seminovos”. As coisas hoje têm esses nomes. Crie um nome para o preconceito. O conselho do comunicador não foi esquecido. Muitas reuniões depois, a ABP lançou o termo “psicofobia”.

Atualmente ele é adotado para designar atitudes preconceituosas e discriminatórias contra as deficiências e os transtornos mentais. O uso da palavra se disseminou. Uma busca rápida no Google aponta 16 mil textos em que ela é citada. A psicofobia pode virar crime.

O senador Paulo Davim (PV-RN) propôs uma emenda para incluir esse tipo de preconceito no projeto de lei de reforma do Código Penal Brasileiro. Vários senadores, entre eles Aécio Neves (PSDB-MG), apoiam a proposta. Cerca de 23 milhões de pessoas (12% da população) necessitam de algum atendimento em saúde mental no Brasil, segundo uma estimativa conservadora da Organização Mundial da Saúde.

Quem sofre de depressão, transtorno bipolar, esquizofrenia, transtorno obsessivo-compulsivo, entre outras doenças, sabe que o preconceito se manifesta de formas variadas e perversas.

Com medo de ofender os pacientes, médicos deixam de encaminhá-los ao psiquiatra. Os pacientes que recebem encaminhamento desistem de procurar o especialista por medo do diagnóstico e da discriminação que ele e a família passarão a sofrer.

O estigma destrói a autoestima dos doentes. Eles deixam de procurar emprego ou de lutar por assistência adequada.

Estima-se que no Brasil 58% dos casos de esquizofrenia não recebem tratamento. Muita gente acredita que os doentes mentais são violentos.

As notícias sobre crimes ajudam a perpetuar essa crença. “93% das pessoas com doença mental não são violentas, mas isso nunca é notícia”, diz o professor Wagner Gattaz, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Pouco depois do chamado Massacre do Realengo, quando um ex-aluno entrou numa escola no Rio de Janeiro, matou 12 adolescentes, feriu outros 12 e se matou, os pacientes de Gattaz passaram a relatar ainda mais dificuldades. “Eles diziam que a família estava com medo, que os amigos passaram a evitá-los e que deixaram de conseguir emprego porque as pessoas achavam que eles poderiam passar fogo em todo mundo a qualquer momento”, diz Gattaz.

Não nos damos conta, mas uma das formas mais eficientes de perpetuar o preconceito contra os doentes mentais é aplicar termos da psiquiatria fora do contexto.

Quem nunca fez isso? A imprensa é mestre na arte do uso metafórico da palavra esquizofrenia. Os portadores dessa doença apresentam períodos em que têm dificuldade para distinguir o real do imaginado.

Podem ocorrer mudanças na forma de pensar e sentir, com prejuízo das relações afetivas e do desempenho profissional e social. Esquizofrenia é isso, mas na linguagem corrente passou a designar todas as mazelas da política, da economia e as esquisitices da cultura pop.

Faltou palavra? Tascamos um esquizofrênico e todo mundo entende o que queremos dizer. Uma amostra dessa prática foi reunida num interessante estudo sobre o estigma da esquizofrenia na mídia, assinado por Francisco Bevilacqua Guarniero, Ruth Helena Bellinghini e Wagner Gattaz.

O uso metafórico da palavra “esquizofrenia” e, principalmente, “esquizofrênico (a) ”, nos sentidos de “absurdo”, “incoerente” e “contraditório” é recorrente. Nas colunas de política, são esquizofrênicos: o governo, o Judiciário, as relações Brasil-Estados Unidos, a Grã-Bretanha e a Comunidade Europeia.

Nas colunas de economia, esquizofrênicas são a política cambial e a política econômica. Nas editorias de artes e espetáculos, quase tudo é classificado como esquizofrênico (a):

 

  • O Festival de Cinema de Gramado
  •  O show da cantora Cyndi Lauper (que passa de “clássicos a platitudes pop”)
  • O ritmo do musical Evita
  • Batman
  • O ator (que se despe de si mesmo para vestir um personagem, segundo a atriz Bruna Lombardi)
  • A infelicidade de hoje (segundo o cineasta e colunista Arnaldo Jabor)
  • Rose, a vizinha do personagem Charlie Harper na série Two and a Half Man
  • A cantora Madonna (que na adolescência não se decidia entre ser freira e popstar, segundo ela mesma)
  • O jornal The New York Times (por cobrar pelo acesso online, mas distribuir conteúdo gratuitamente nas redes sociais)

 

Seria divertido se não fosse trágico. A assistência à saúde mental no Brasil vive uma crise profunda.

ÉPOCA contou isso aqui. Há uma luta ideológica entre os psiquiatras e parte dos psicólogos. As famílias estão desesperadas. Falta acesso a medicamentos, ambulatórios e leitos psiquiátricos para internar os pacientes nos momentos de crise.

Apenas 2% dos gastos do SUS são destinados à saúde mental. Mudar isso tudo depende de mobilização, dinheiro e disposição para a luta política.

Combater o estigma não custa nada e depende da vontade individual. Um bom começo é pensar nas palavras que escolhemos e repetimos. Elas têm peso e consequência.

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