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Chico, Paulo e Pedro

Comentarista Chico Lang entrou em surto psicótico depois da morte dos filhos Paulo e Pedro

por ADRIANO WILKSONDO UOL, EM SÃO PAULO

Dois meses depois de ver o filho morrer na sua frente, após se jogar do sexto andar do prédio onde morava, o jornalista Chico Lang saiu de casa para resgatá-lo de uma caverna, onde ele era mantido como refém por seres extraterrestres.

Para salvar Paulo, Chico precisava ir a uma conferência em um hotel no bairro da Liberdade, no centro de São Paulo, onde aprenderia como combater os seres que produzem a matéria escura, a misteriosa substância que compõe a maior parte do universo. Eram esses seres que mantinham cativos Paulo e os dez jogadores do Flamengo que haviam morrido em um incêndio no Ninho do Urubu naquela mesma semana.

Era fevereiro de 2019, e Chico Lang estava convencido de que a morte era uma invenção dos extraterrestres.

Foi até o hotel da conferência dirigindo o carro Peugeot que ele havia comprado uma semana antes por R$ 20 mil, um dinheiro que ele não tinha em conta — mas conseguira um empréstimo a ser pago nos anos seguintes. Quando Chico chegou ao hotel, o recepcionista logo reconheceu o homem que está há mais de 30 anos fazendo comentários sobre futebol na televisão. O que o funcionário não entendeu foi aquela história de extraterrestres, sequestro, matéria escura.

A equipe do hotel telefonou à TV Gazeta, onde Chico Lang trabalha desde 1990. O produtor Primo Ribeiro foi resgatá-lo. Ao entrar no prédio de nove andares na Av. Paulista, Chico ainda não tinha percebido que algo muito errado estava acontecendo dentro de sua mente. O médico da emissora achou melhor interná-lo. No hospital Nove de Julho, os médicos perceberam que o jornalista de 67 anos estava vivendo um surto psicótico, desencadeado, entre outras coisas, pelo suicídio do filho de 23 anos. Chico ficou na UTI durante cinco dias e logo em seguida passou outros quinze no hospital psiquiátrico Santa Mônica.

Ele precisou juntar os fios soltos de sanidade para se recuperar do maior golpe que a vida lhe pregara até então. A perda de um filho talvez seja a maior dor que qualquer pessoa pode sentir. Mas Chico precisava de todas as forças para elaborar e aceitar aquela dor. Porque nos meses seguintes haveria outras.

O nascimento de Paulo (E o renascimento de Chico)

No dia em que Chico Lang soube que sua mulher estava grávida, ele desceu o prédio da TV Gazeta, atravessou a Avenida Paulista e comprou pra ela vários anéis de ouro. Eram os meados de 1994. Voltou à redação da TV e pulou no colo de seus colegas de trabalho, celebrando a gravidez. Naquela altura, ele já tinha 42 anos e três filhos, Bruna, Tuany e Pedro. Mas Chico queria outro, sonhava com mais um filho homem. “A gente tem esse machismo, né?”, admite.

Nos exames de ultrassom, foi impossível saber o sexo do bebê. Chico foi tomado pela surpresa e pelo encanto quando pegou a criança no colo pela primeira vez. “O nascimento do Paulo foi um renascimento pra mim. Me senti um garoto de novo.”

O pai comemorou o primeiro xixi, o primeiro cocô, a primeira palavra, o primeiro passo, o primeiro tudo. Qualquer banalidade era causa para celebração. Mas o bebê, como a maioria dos bebês, nasceu decretando o fim temporário do sono tranquilo dos pais, e o casal Lang passou aqueles primeiros anos de Paulo sem dormir direito, acordando no meio da noite pra contornar as crises de choro e os desejos infantis.

Quando foi à escola pela primeira vez, Paulo logo deu os sinais da personalidade que desenvolveria ao longo da vida. Era comunicativo e brincalhão, agregador e solidário, bagunceiro e rebelde. Quando passou a ter força física suficiente para dar vazão aos impulsos de sua mente inquieta, protagonizou um episódio que marcou sua infância e permanece até hoje na memória de seus pais: Paulo empurrou com violência uma de suas professoras do colégio Notre Dame, que bateu num vaso e foi ao chão. “Foi uma puta confusão. Ele quase foi expulso da escola”, lembra Chico.

Pai corintiano, filho são-paulino

Pai e filho conversavam muito, se divertiam muito e costumavam ir ao cinema com frequência. Só se afastaram quando a adolescência bateu à porta. Chico, corintiano folclórico, viu o filho se tornar são-paulino por influência da avó e de Rogério Ceni, que um dia encontrou o garoto e o presenteou com luvas, camisas e cachecóis.

Paulo lutava boxe e muay thai, jogava tênis, surfava e foi parte da seleção de futebol da Faculdade Casper Líbero, onde cursava publicidade e propaganda. A faculdade fica no mesmo prédio da TV Gazeta, onde o pai entra ao vivo toda semana para comentar as idas e vindas do futebol paulista. Paulo tinha muitos amigos e era conhecido por todos os alunos, não apenas por ser filho de Chico Lang, mas por estar envolvidos em várias atividades no campus.

Paulo e Chico tinham projetos juntos. Foi graças ao pai que o filho conseguiu seu primeiro trabalho, como comentarista esportivo de uma rádio. Depois tiveram a ideia de criar um canal no YouTube no qual entrevistariam ex-jogadores de futebol. Chico se candidatou a vereador por São Paulo nas eleições de 2016 e a deputado estadual em 2018. Paulo se engajou nas duas campanhas, estudou, fez vídeos, atualizou as redes sociais e pediu voto nos quatro cantos da cidade. O jornalista nunca se elegeu. Depois da derrota, Paulo foi às redes agradecer os votos e dizer que seguiria os ideais de Chico.

Era um jovem popular, bonito, cheio de amigos, com muitas ideias, planos e sonhos. Acompanhado por um psicólogo e um psiquiatra, tratava de uma certa ansiedade e de um complexo de perseguição que começou a desenvolver na adolescência. Quando Paulo tomou a decisão de encerrar a sua vida, deixou a família em desespero, tendo que lidar com a dor e a dúvida. “Os profissionais que cuidavam dele nunca nos alertaram de nenhuma tendência suicida”, lamenta Chico.

No dia do velório, havia centenas de amigos, parentes e conhecidos para se solidarizar com a família enlutada. Chico se encarregou ele próprio das providências do enterro, ainda anestesiado pelo choque da morte precoce.

Os dias passaram até a manhã em que, em surto psicótico, Chico acreditou que Paulo estava vivo e sequestrado por seres alienígenas.

No limite da loucura

Nos quinze dias em que passou no hospital psiquiátrico Santa Mônica, em Itapecerica da Serra, na Grande São Paulo, Chico encontrou pessoas que o marcaram para sempre. Havia lá um sujeito que acreditava ser Jesus Cristo e uma moça que achava ser o Anjo Gabriel. Lá, conheceu um homem que se dizia fundador da maçonaria, uma organização que remonta ao século 14, e uma moça que jurava ser promotora pública, mas que não tinha nem terminado o ensino médio.

Chico se sentiu muito bem tratado. Pela manhã, os pacientes tinham atividades físicas e manuais. Cada um registrava seus afazeres em uma cartela, diariamente assinada pelos enfermeiros. Quem completasse todas as tarefas durante a semana, tinha direito a mais tempo ao telefone. Celulares eram proibidos. Chico telefonava para sua filha Sofia e para sua esposa, Rose. As ligações eram supervisionadas. Visitas só aos fins de semana.

À tarde, vinham as palestras. Uma para todos os internados e outra só para os dependentes químicos. Chico repetia o início de sua carreira como repórter dos jornais do Grupo Folha, fazia anotações em seu bloquinho e registrava os assuntos debatidos. “Para mim, fez muito bem esse processo. Forçava a reflexão sobre os transtornos, o seu e o dos outros.”

“Entre os pacientes também a integração era grande. Discutíamos o drama de cada um, falávamos de problemas pessoais, fazíamos jogos de adivinhação, jogávamos videogame e pingue-pongue. Os psicólogos se misturavam com a gente e mantínhamos uma convivência saudável.”

Tudo isso acontecia no bloco A, onde ficavam os pacientes não perigosos. No bloco B, muitos surtavam. Quando tocava uma sirene, os enfermeiros corriam e o hospital vivia momentos de tensão e agonia. Em um terceiro bloco ficavam os menores de idade, com vários tipos de problemas como tendência ao suicídio, transtorno de boderline e esquizofrenia.

No meio de tantos devaneios, Chico começou a tomar pé da própria realidade. Ali, ele voltou a ter consciência de sua condição de pai enlutado e, com a ajuda dos médicos e dos psicólogos, conheceu algumas possíveis causas de seu surto. Foi no hospital que, depois de um exame, descobriu que estava com diabetes em nível avançado e precisava tratar dela com urgência. Ele acredita que o desequilíbrio hormonal da doença pode ter sido uma das explicações de seu rebuliço mental. “Não sei se a diabetes causou o surto ou se o surto só foi possível por causa da diabetes”, conta.

Quando começou a se sentir melhor, tratou de tentar convencer a equipe de que precisava receber alta. Não apenas para voltar ao trabalho, mas também porque tinha uma tarefa ainda mais urgente pela frente: ajudar seu filho mais velho, Pedro, de 40 anos, a enfrentar outras duas doenças: a dependência química e o câncer.

Abaixo do viaduto, mais um resgate

Chico nunca vai esquecer do dia em que precisou ir ao viaduto do Glicério, no centro de São Paulo, resgatar Pedro. O local é conhecido por concentrar uma multidão de usuários de crack. Chico chegou lá discretamente, mas logo foi reconhecido pelas pessoas que frequentam o viaduto. Foi assediado como uma celebridade, tirou fotos, recusou pedidos de autógrafo.

No meio da confusão, encontrou o filho. Chico sabia que Pedro era usuário e dependente de drogas havia anos, embora aquela fosse uma realidade que ele preferisse evitar. Quando chegou ao viaduto, descobriu que Pedro estava tão habituado ao local que tinha até uma namorada, que também passava os dias ali. Foi quando o pai deu um ultimato ao filho: “Essa foi a primeira e a última vez que eu vim te buscar aqui.” Pedro estava mais perto da morte do que ele imaginava, disse Chico, tentando convencê-lo a buscar um tratamento.

Pedro nasceu em 1979, quando Chico tinha 20 e poucos anos e “não era ninguém”, segundo ele próprio; um redator do jornal “Notícias Populares” e da “Folha da Tarde”, para ser mais preciso. Pedro foi uma criança “espoleta”, como gosta de dizer o pai, e um adolescente roqueiro. Ouvia AC/DC e Guns N’ Roses, Ozzy Osbourne e Nirvana, e passava o dia inteiro colado à tela da MTV. Era um aventureiro, um apaixonado pela vida, um sujeito muito inteligente, de raciocínio rápido e que sabia conversar sobre tudo.

Cursou turismo na Cásper Líbero e depois jornalismo, mas não se formou. Tentou ser padre, mas também não concluiu o seminário. Cresceu distante do pai, que se separou da mãe quando Pedro ainda era um bebê. Segundo Chico, Pedro teve o primeiro contato com drogas ainda na infância. O pai acredita que o filho tenha crescido bebendo álcool e fumando maconha. “Ele passava o dia inteiro na rua”, conta. “Talvez se ele tivesse ficado mais perto de mim e eu tivesse sido mais duro com ele, as coisas teriam sido diferentes. Talvez…”

Uma afta persistente na língua

Antes de resgatar Pedro do meio dos demais usuários de crack, um subproduto barato da cocaína, Chico já tinha ido buscar o filho na delegacia após ele ser detido por brigar na rua e ofender policiais. Depois de dois episódios marcantes, Chico tinha certeza que o próximo passo era buscá-lo no IML. Para isso não acontecer, conseguiu convencê-lo a se internar. Em uma clínica religiosa no interior de Mato Grosso do Sul, Pedro ficou sóbrio e se tornou obreiro, ajudando na manutenção da clínica e no tratamento dos demais pacientes.

Quando voltou a São Paulo, participou da campanha política do pai. Um dia reclamou de uma afta persistente na língua. Um médico resolveu fazer uma biópsia do material recolhido e descobriu ali células cancerígenas. Chico conseguiu iniciar o tratamento de Pedro com a ajuda fundamental do jornalista Flávio Prado, seu amigo e colega de TV Gazeta. A emissora como um todo se uniu para apoiar o comentarista.

O tumor foi retirado em uma cirurgia que deixou sequelas na face de Pedro. Apesar do esforço, o câncer voltou ainda mais forte. Chico foi chamado ao hospital. Em uma conversa com os médicos descobriu que o filho tinha pouco mais de duas semanas de vida. “Você está aqui por teimosia”, ele lembra de ter dito ao filho acamado. “Quantas vezes eu disse pra você largar essa porra dessa droga?”

Pedro morreu em agosto de 2019, oito meses depois do irmão mais novo.

Chico Lang por trás de Chico Lang

Chico Lang caminha pelos bastidores da TV Gazeta e cumprimenta todos os funcionários e amigos que encontra pelo caminho. Ele é uma espécie de patrimônio da tradicional emissora, fundada em 1970 e dedicada principalmente ao público paulista. Enquanto o maquiador espalha pó em seu rosto para deixá-lo pronto para as câmeras, ele conta piadas e elogia o trabalho da equipe.

Quando a apresentadora Michelle Gianella o chama para comentar os fatos do dia e as câmeras apontam pra ele, o sujeito simpático e bonachão dos bastidores dá lugar ao personagem que Chico Lang criou para se diferenciar na crítica esportiva: o do jornalista corintiano sempre incisivo, às vezes raivoso, que fala aquilo que supostamente ninguém está falando. As críticas saem de sua boca como flechas de fogo. Naquela tarde, direcionadas principalmente a Sylvinho, então técnico do Corinthians. Com o dedo em riste, Chico esbraveja, exigindo a demissão do treinador — o que de fato aconteceria algumas semanas depois.

Foram poucas as vezes em que ele tirou a máscara para revelar diante das câmeras o homem por trás do personagem. Uma delas logo após a morte de Paulo, ao agradecer uma mensagem carinhosa do técnico Abel Braga, ele mesmo pai de um filho que se suicidou. As outras, ao relatar a luta de Pedro contra a dependência e depois ao informar sobre a morte dele.

Desde então, ateu convicto, entrou numa jornada de estudos sobre a mente humana. Lendo Freud, Lacan, Platão e Aristóteles se tornou capaz de fazer algumas perguntas fundamentais. Foi buscar respostas no livro “Em busca do sentido da vida”, de Victor Frankl. Entrou na faculdade de psicologia e pretende seguir carreira acadêmica na área. Se tudo der certo, vai se formar em 2024, quando tiver 71 anos.

Três anos depois da morte de seus dois filhos homens, ao refletir sobre tudo o que passou, Chico Lang lembra com clareza do dia 9 dezembro de 2018, um sábado. Era final da Libertadores, River x Boca, em Madri.

Ele estava sentado em uma namoradeira na varanda de seu apartamento, e Paulo estava a seu lado. O filho estava brincalhão como sempre. “Pai, qual a origem do universo?”, ele perguntou, tirando sarro do interesse do pai por esses assuntos. “Eu não sei, mas vou procurar saber e te falo. O Einstein não conseguiu, mas eu vou conseguir”, devolveu Chico. Os dois riram. Almoçaram. A família se reuniu para ver o jogo. Paulo morreu logo em seguida. Tatuada no braço direito, logo acima do cotovelo, ele tinha a frase “A vida é uma só.”

“É muito difícil de entender”, diz Chico. “Mas talvez um dia seja possível aceitar.”

Matéria publicada originalmente no Site UOL – https://www.uol.com.br/esporte/reportagens-especiais/chico-lang-comentarista-relata-surto-psicotico-e-como-se-recuperou-depe-apos-morte-dos-filhos-paulo-e-pedro/#end-card

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