Reconhecida pela OMS desde 1980, a ludopatia atinge cerca de 1% da população do Brasil
Por João Ker – Jornal O Estado de São Paulo, 19/05/2023
As denúncias de fraude no futebol e a falta de regularização das apostas online no Brasil durante os últimos dias acenderam o alerta para até que ponto é saudável investir nessas plataformas. Também definido como ludopatia, o vício em apostas é reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) desde 1980. No Brasil, a estimativa é que de 1% a 1,3% da população tenha problemas patológicos relacionados ao hábito.
Além do prejuízo financeiro, o vício em apostas pode causar “angústia e deficiência” nos casos mais graves, principalmente quando a pessoa abandona a saúde e o bem-estar para focar na compulsão. Segundo a OMS, o problema se agravou de forma “massiva e sem precedentes” com o aumento da oferta de plataformas online voltadas para as “bets” (“apostas”, em inglês).
Especialistas que estudam o assunto afirmam que o vício em apostas deve persistir e até crescer nos próximos anos graças à popularização das plataformas de “bet”. “Isso aumentou massivamente o número de pessoas viciadas, a partir do momento que expôs formas mais abrangentes de acesso às apostas”, diz o psiquiatra Cirilo Tissot, especialista no tratamento de compulsões.
“É um problema incontrolável e que interfere na vida diária, uma situação em que nosso filtro de juízo, controlado pelos lobos frontais, fica alterado”, explica Fernando Gomes, neurocientista e professor no Hospital das Clínicas de São Paulo. Assim como o vício em álcool, nicotina e outras substâncias, a compulsão por apostas também envolve neurônios do sistema dopaminérgico mesolímbico, responsável pelo sentimento de euforia, prazer e excitação do cérebro.
O problema, entretanto, começa quando a pessoa começa a associar a sensação de prazer exclusivamente ao ato de apostar, criando assim um ciclo vicioso: a euforia de vencer; a tristeza ao inevitavelmente perder pela primeira vez; a excitação em apostar de novo por acreditar que vai conseguir “recuperar” o prejuízo; e o desespero quando perde tudo. “É um problema complexo, que envolve algo mascarado como diversão e animação, mas pode destruir pessoas e a saúde da família”, diz Gomes.
A situação é agravada quando o cérebro passa a rejeitar períodos de estabilidade emocional e depender desse ou de outros estímulos para gerar “picos de prazer”, o que gera uma codependência em outras substâncias. Segundo o neurocientista, de 60% a 70% das pessoas com vício em apostas também desenvolvem dependência do álcool. “Em alguns casos, é uma questão de sobrevivência.”
Como saber se tenho vício em apostas?
O perfil principal de pessoas diagnosticadas com ludopatia no Brasil é formado por homens de 30 a 50 anos, competitivos e com emprego fixo, mas baixo poder aquisitivo, ou desempregados. Eles também costumam ter problemas de inserção social e usam as apostas como uma forma de criar vínculos sociais.
No Brasil, uma pesquisa publicada em 2014 por cientistas da USP apontou que 12% da população já havia apostado pelo menos uma vez na vida e que o vício em apostas só ficava atrás do álcool e do cigarro. A suscetibilidade à compulsão, entretanto, pode ser causada por uma série de fatores que vão da predisposição genética, exposição social e interferência psicológica.
“Antes de fazer o diagnóstico, é preciso descartar que o paciente não tem nenhum comportamento maior desencadeado por condição pré-existente”, diz o psiquiatra Cláudio Duarte, que trata pacientes de ludopatia no Hospital Santa Mônica. “Alguns traços de temperamento também se mostram mais sensíveis à compulsão, como aquelas pessoas que só se sentem bem quando buscam uma emoção muito grande.”
O descontrole sobre o ato de apostar é um dos principais traços de quem tem vício em apostas, algo que pode ser medido em três categorias ou níveis comportamentais: o controle total, regulado sem esforço e de forma até inconsciente; o intermediário, que é controlável, mas depende de uma quantidade grande de energia ou psíquica para manter o controle dentro dos parâmetros que você ou a sociedade estabelece; e a perda total de controle, quando um hábito só é interrompido por uma limitação externa, como acabar a comida, o dinheiro ou a droga que é foco do vício.
O transtorno do impulso envolvido no ato de apostar compulsivamente pode ser causado por uma sobreposição de diagnósticos, como bipolaridade, alcoolismo, depressão e até tumor cerebral. Por isso, a principal indicação é que o diagnóstico seja feito por um profissional de saúde mental que possa medir a dimensão do problema.
Apesar de frisar que “cada caso é um caso”, Duarte cita abaixo nove comportamentos que podem indicar um vício patológico em apostas. Caso você se identifique com quatro ou mais itens, é aconselhável buscar ajuda psicológica.
Necessidade crescente de apostar, com valores cada vez maiores;
- Alteração de humor (irritabilidade, agitação ou tédio) quando tenta interromper o ciclo de apostas;
- Insucesso no controle das apostas, com tentativas repetidas e frustradas de abandonar o hábito;
- Pensamento e planejamento constantes sobre os próximos atos de apostar;
- Sentimento de angústia, tristeza ou ansiedade ao tentar se divertir ou sentir prazer, assistindo a uma partida de futebol por exemplo, sem o ato de apostar;
- Pensamento irreal que tem a capacidade de “recuperar o prejuízo” com mais apostas;
- Mentiras: comportamento antissocial e negação do problema, com tentativas de tentar minimizar a frequência das apostas até para as pessoas mais próximas;
- Comportamento de risco: arrisca aspectos e relações importantes da vida como finanças, emprego, progresso acadêmico ou relacionamento afetivo em favor das apostas;
- Falência: depende de outras fontes de renda para sustentar o vício.
“Demora mais ou menos um ano para a pessoa preencher os primeiros critérios que determinam como viciada em jogo, em termos de frequência e intensidade”, afirma Tissot.
Como tratar o vício em apostas?
Assim como o tratamento de outros vícios, a compulsão por apostas também é tratável, mas de forma multidisciplinar. O primeiro passo é buscar a ajuda de um psicólogo ou psiquiatra profissionais, que poderão avaliar o quadro e recomendar ou não outras terapias.
Alguns casos podem ser tratados com o uso de remédios para estabilizar o humor, diminuir a ansiedade e amenizar os sintomas da depressão. “Além disso, é preciso terapia para toda a família e pessoas envolvidas, porque o paciente passa a mentir e pode comprometer o patrimônio dos filhos, cônjuges e até o dinheiro para comprar comida”, aponta Gomes.
Há 30 anos no Brasil, o Jogadores Anônimos também é um caminho de apoio terapêutico coletivo que oferece reuniões e aconselhamento nas maiores capitais do País, com reuniões presenciais e online (saiba mais aqui). O grupo segue o mesmo princípio dos Alcoólicos Anônimos, com 12 passos em busca da cura e abstinência.
“Esses grupos geralmente apresentam bons resultados, porque a pessoa precisa mudar a sua vida inteira. Nem sempre o SUS dá conta do problema todo”, diz Gomes.