Comunicado: A partir de 1º de novembro, os atendimentos do Centro de Cuidados em Saúde Mental serão realizados no Hospital Santa Mônica em Itapecerica da Serra - SP Saiba mais

Saúde Mental

Dia da Consciência Negra – Racismo e saúde mental: feridas que ainda sangram

Representatividade e pertencimento como fatores de proteção psíquica

O dia 20 de novembro, data da morte de Zumbi dos Palmares (1695), é marcado no Brasil como o Dia da Consciência Negra.

É um momento simbólico de afirmação da história, da cultura, da luta da população negra e de reflexão sobre ainda persistentes desigualdades.
Neste especial, exploramos três eixos fundamentais e interligados:

  1. O impacto do racismo — estrutural, institucional e interpessoal — na saúde mental da população negra.
  2. Como representatividade e pertencimento funcionam como fatores protetivos para a psique.
  3. A importância crescente das vozes negras nas profissões de saúde mental (psiquiatria, psicologia) e como isso fortalece o cuidado em saúde mental para pessoas negras.

Por que “Racismo e saúde mental”?

Qual a relação entre racismo e adoecimento psíquico?

Diversos estudos já identificaram que o racismo deve ser tratado como determinante social de saúde, inclusive da saúde mental.

  • O relatório do Ministério da Saúde afirma que o cuidado em saúde mental ofertado pela rede pública deve reconhecer o racismo como “uma determinação social de violação de direitos”.
  • Em um boletim da Secretaria da Saúde do Rio Grande do Sul, alerta-se que pessoas negras são mais suscetíveis a transtornos mentais por fatores como racismo institucional e desigualdade socioeconômica — “ausência de sentimento de pertença, sentimento de inferioridade, rejeição, negligência, maus tratos”.

Quais são os dados mais recentes no Brasil?

  • Em relatório da COFEN (“Saúde Mental da População Negra”), constata-se que indivíduos negros apresentam maior prevalência de depressão, menor bem-estar psicológico, maior exposição a estresse crônico.
  • O risco de suicídio entre jovens negros (10-29 anos) no Brasil é estimado em aproximadamente 50% maior do que o entre jovens brancos da mesma faixa etária.
  • Um estudo aponta que a representatividade de psicólogos negros é ainda pequena, o que dificulta a escuta e o acolhimento específico para essa população.

Por que o racismo gera esse impacto tão profundo?

Podemos organizar em três níveis que interagem:

  • Racismo estrutural: instituições, políticas e práticas sociais que geram desigualdades persistentes (moradia precária, acesso limitado à educação, discriminação no trabalho).
  • Racismo institucional: no serviço de saúde, por exemplo, quando pessoas negras relatam tratamento diferente ou acesso inferior aos cuidados.
  • Racismo interpessoal / microagressões: humilhações repetidas, estigmas, silenciamentos, invisibilização. A somatória dessas “microviolências” gera estresse crônico, sensação de não-pertencimento, hipervigilância psicológica.
    Esse conjunto de fatores inviabiliza uma “saúde mental normalizada” quando comparado aos grupos privilegiados, porque o conflito racial torna-se parte da vivência cotidiana.

Representatividade e pertencimento como fatores de proteção psíquica

O que entendemos por representatividade e pertencimento?

  • Representatividade significa que pessoas negras vejam em espaços de poder, na mídia, na academia, na saúde mental, indivíduos que lhes representem — o que transmite mensagem de “eu posso, eu pertenço”.
  • Pertencimento envolve sentir-se parte — de comunidades, de história, de narrativas institucionais que reconhecem a negritude como valor, e não como déficit.
    Quando ambas estão presentes, servem como fatores de proteção psíquica: reduzem sensação de isolamento, de invisibilidade, de “ser o único”.

Como esses fatores agem na prática da saúde mental?

  • A demanda por profissionais negros na psicologia evidencia que pacientes negras/os buscam identificação e acolhimento que leve em conta racismo e subjetividade negra.
  • A presença de vozes negras na clínica, na formulação de políticas, e na pesquisa produz novas escutas e repertórios de cuidado — que são cultural e historicamente sensíveis.
  • Em sentido de prevenção, sentir-se pertencente a uma comunidade e ver modelos de vida bem-sucedidos que compartilham sua origem ou cor ajudam a construir autoestima, resistência psíquica, e redes de apoio que amortecem choques raciais.
  • Representatividade não elimina o racismo, mas mitiga seus efeitos, ajudando a pessoa negra a interpretar sua vivência com menos autoinculpação e mais coletividade.

Exemplos práticos e recomendações

  • Instituições de saúde mental e ensino podem mapear representatividade racial entre profissionais e promover políticas de contratação e formação antirracista.
  • Em atendimentos, incorporar escutas que considerem “o que foi vivido antes de você chegar” — histórico racial, sentido de eco de um trauma coletivo.
  • Movimentos e coletivos negros na saúde mental funcionam como espaços de pertencimento e identidade reparadora.
  • Para os indivíduos: buscar (quando possível) psicólogos/psiquiatras negras/os ou sensibilizados para racismo, estabelecer redes de apoio (coletivos negros, grupos de acolhimento), nutrir ancestralidade/cultura como reforço de identidade.

Vozes negras na psiquiatria e psicologia

Qual o panorama atual no Brasil?

  • O Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais (CRP-MG) relatou que, segundo o estudo CensoPsi 2022, entre as profissionais mulheres da psicologia, 64% se declaravam brancas, 26% pardas, 8% pretas — indicando baixa presença de negras.
  • A escassez de estudos, revisões e formações sobre racismo para psicologia clínica foi apontada como lacuna crítica em revisão de literatura.
  • No setor da saúde mental, em documentos da Política Nacional, há o reconhecimento da necessidade de qualificação antirracista das equipes.

Quem são algumas referências e por que são importantes?

  • Neusa Santos Souza (1951-2008): médica psiquiatra, psicanalista brasileira negra, autora de Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social, obra seminal no debate da psicologia preta no Brasil.
  • Psicólogas negras que compartilham suas práticas e reflexões nas redes sociais — como a psicóloga Mariana Reis — ajudam a visibilizar novas formas de cuidado e escuta para população negra.

O que falta e quais os desafios?

  • Formação: incluir no currículo de psicologia, psiquiatria e demais áreas da saúde a dimensão racial como atravessamento obrigatório.
  • Representatividade: aumentar o número de profissionais negras(os) e de pesquisadores negras(os) nas áreas de saúde mental.
  • Escuta e cuidado sensíveis: incorporar nas práticas clínicas o reconhecimento de racismo como fator de adoecimento e não como mero “problema individual”.
  • Acesso: eliminar barreiras para que pessoas negras tenham acesso a serviços de saúde mental de qualidade. Estudos apontam que mulheres negras enfrentam obstáculos de custo, localização, cultural, falta de confiança no profissional.

Perguntas e Respostas (FAQ)

P1. O racismo é mesmo um fator de risco para transtornos mentais?

Sim. O racismo — sobretudo o estrutural e institucional — gera estresse crônico, sentimento de inferioridade, invisibilidade ou hiperexposição, que favorecem o surgimento de depressão, ansiedade, transtorno de estresse pós-traumático, entre outros.

P2. Por que há maior risco de suicídio entre jovens negros?

Porque somam-se vulnerabilidades raciais, desigualdades sociais, sensação de não pertencimento e ausência de modelos de vida reconhecidos. Um estudo apontou risco 50% maior entre homens negros de 10-29 anos.

P3. Como a representatividade protege a saúde mental?

Quando uma pessoa negra vê outras pessoas negras em posições de cuidado, protagonismo ou pesquisa, isso legitima sua identidade, fortalece autoestima, reduz sensação de invisibilidade. O pertencimento a comunidade e narrativa coletiva reduz a carga psíquica individual de “dar conta sozinho(a)”.

P4. O que posso fazer como profissional de saúde mental ou gestor?

  • Realizar formação sobre racismo e saúde mental, reconhecer o racismo como determinante de saúde.
  • Garantir que a equipe reflita diversidade racial ou tenha sensibilização antirracista.
  • Promover ambiente de escuta que acolha vivências raciais e valorize estórias negras.
  • Criar redes de apoio ou parcerias com coletivos negros para ampliar alcance e confiança.
  • Monitorar dados por raça/cor/etnia para avaliar disparidades no atendimento.

P5. Como posso, como pessoa negra ou aliada, buscar cuidado mais adequado?

  • Verificar se o(a) profissional tem sensibilidade ou experiência com vivência negra, racismo.
  • Exigir que sua história racial, celular, ancestral e cultural seja respeitada no atendimento — não reduza a questão a “problema psicológico individual sem contexto”.
  • Buscar apoio em redes de coletivos negros, grupos de apoio, espaços com representatividade.
  • Priorizar o pertencimento e apoio comunitário como parte da saúde mental — não somente a consulta isolada.

Conclusão

No Dia da Consciência Negra, a reflexão sobre saúde mental e racismo assume urgência e relevância para a sociedade brasileira. As feridas raciais não estão apenas no passado — sangram no presente, manifestando-se em sofrimento psíquico, invisibilização, desigualdade de acesso. Mas há também esperança e caminhos: a representatividade e o pertencimento, quando fortalecidos, funcionam como escudos psíquicos. E as vozes negras na psiquiatria e psicologia não são apenas símbolo — elas promovem práticas de cuidado mais justas, mais inclusivas, mais efetivas.
Para que a saúde mental da população negra deixe de ser tratada como exceção ou “caso especial”, é indispensável tornar visível o racismo como determinante, reforçar representatividade, investir em profissionais negras(os) e construir políticas de saúde que reconheçam ancestralidade, identidade e pertencimento.
Esta matéria convida gestores, profissionais e a sociedade a olhar para esse tema com o respeito, a profundidade e a urgência que ele merece — não apenas no dia 20/11, mas todo dia.

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